
Jornalista
“Até quando?”. O questionamento motivado pela insegurança ecoa na voz de imigrantes que atuam como entregadores em Dublin. Roubos de motos e bicicletas, ataques com pedras e chutes, além de situações constantes de intimidação são unanimidade nos relatos de brasileiros que trabalham pelas ruas da capital irlandesa realizando entregas de comidas por aplicativos.
Sob chuva intensa, dezenas de riders (ciclistas, em inglês) realizaram um protesto na região central da cidade, no final da tarde deste domingo (30), pedindo a ação das autoridades em casos de violência. O ataque a um grupo de entregadores bolivianos, há pouco mais de uma semana, no Temple Bar, zona boêmia da cidade, trouxe novamente à tona a falta de segurança para a atuação dos profissionais.
“Diariamente a gente vê roubos, né? E agora começaram os ataques junto. O rapaz foi esfaqueado enquanto estava trabalhando”, relata o paulistano Gabriel Fernandes, de 25 anos. “Roubaram quatro bikes nesse dia”, acrescenta o brasileiro, que vive na Irlanda há três anos e atua como entregador desde que chegou ao país. Os atos de violência são majoritariamente atribuídos a grupos de adolescentes irlandeses.
Pela experiência dos entregadores, o maior número de casos de agressão e furtos ocorrem no lado norte da cidade, mas não é exclusividade, já que também há registros em outras áreas. Gabriel relembra que conseguiu se desvencilhar de dois casos de agressão, um deles quando estava pedalado e foi seguido por um grupo de dez adolescentes que tentaram derrubá-lo da bicicleta com chutes. Na outra ocasião, quase foi empurrado dentro do canal localizado no lado sul de Dublin.

“Eles precisam da bicicleta para trabalhar”
Por meio das redes sociais, os entregadores se organizam para andar em grupos e enviar informações sobre a segurança em determinadas regiões. As conversas também são utilizadas para avisos sobre bikes e motos roubadas, já que os equipamentos normalmente possuem um rastreador: “Os próprios deliverers que se unem. A gente vai atrás pra pegar a bike, pegar a moto, porque a Garda [polícia local] mesmo não resolve”, explica Gabriel.
O brasileiro conta que há poucas semanas um conhecido sabia exatamente aonde a motocicleta roubada estava, mas não foi possível recuperar. A carioca Débora Santana, de 29 anos, também já vivenciou uma situação semelhante ao ver a bicicleta de uma amiga à venda. O grupo organizou uma ação para comprar a bike na tentativa de reaver o equipamento com o auxílio da polícia, já que ela possuía a nota fiscal, mas não obteve sucesso.
Essa é a principal reivindicação dos entregadores, que esperam mais auxílio das autoridades policiais para a recuperação de bicicletas e motos furtadas. O pedido foi feito diretamente a representantes da Garda em uma reunião realizada na última quarta-feira (26). Débora atua como entregadora desde 2020 e esteve presente no encontro.
Representando os colegas, a brasileira reforçou que a maior preocupação é que, com os próprios riders se unindo para buscar os equipamentos de trabalho diretamente com os ladrões, os episódios de violência se intensifiquem e com o tempo ocorra algo mais grave “Só que o que eles vão fazer? Eles precisam da bicicleta pra trabalhar”, desabafa Débora, que quase teve a própria bicicleta furtada logo após a reunião, no centro de Dublin. A ação foi evitada porque ela viu o momento da ação e correu atrás do homem que estava levando a bike, conseguindo recuperá-la.
“A Garda falou que, infelizmente, eles não prometem uma resposta rápida sobre as coisas que estão acontecendo porque eles têm coisas mais sérias pra resolver. Eu queria saber quais coisas sérias são essas porque se não é sério uma pessoa ser esfaqueada, não é sério uma pessoa ser atropelada, se não é sério uma pessoa ter o seu objeto de trabalho roubado, o que mais é sério?”, questiona a brasileira. Após o encontro, um representante da polícia local enviou um email à Debora para que eles mantenham contato e uma nova reunião seja marcada.
Durante a gravação dessa reportagem, enquanto entregadores concediam entrevista próximo ao parque Stephens Green após o protesto, um rapaz irlandês que passava na rua começou a questionar de maneira intimidatória sobre o que o rider estava falando. Acompanhado de outros dois homens, saiu desejando “boa sorte” de maneira irônica.
Casos de violência não são novidade
A tensão e medo no rosto dos entregadores ficou evidente e, caso o rapaz não tivesse saído, alguém chamaria imediatamente o auxílio de outros colegas por meio das redes sociais. Poucos minutos antes, Débora havia relatado que quando vê esses grupos reunidos “o coração dispara”.
A sensação é semelhante para o carioca Cláudio Martins, de 34 anos, que atua há dois como entregador: “Todo dia a gente tem que ficar trabalhando prestando atenção, se a minha bike vai ser roubada, não posso ter um minuto de paz, tem que ficar com um olho no restaurante e o outro na bike, sem parar, e é desgastante emocionalmente”, desabafa o imigrante brasileiro. Cláudio reforça que só quer ter paz para trabalhar e conseguir ajudar a família no Brasil.

O desejo de realizar o trabalho em segurança é de todos os entregadores, expresso inúmeras vezes no protesto. Os riders carregam marcas de uma memória recente das tragédias envolvendo os colegas Thiago Cortes, em 2020, e George Gonzaga Bento, em 2021, e esperam que ações sejam tomadas logo para que essas situações nunca se repitam.
Thiago trabalhava realizando entregas de comida por aplicativo no dia 31 de agosto de 2020 e morreu após ser atropelado por um motorista que fugiu sem prestar socorro. Já o brasileiro George Gonzaga Bento se deslocou para coletar uma encomenda na noite de 26 de janeiro de 2021 e se envolveu em uma briga tentando impedir o furto de uma bicicleta. George esfaqueou um adolescente irlandês que acabou morrendo. O brasileiro foi inocentado pela Justiça irlandesa por ter agido em legítima defesa após passar quase 500 dias preso.
“É bom a gente estar no conforto da nossa casa, recebendo a comida quentinha, gostosa, mas tem alguém que faz esse trajeto na chuva, no sol, debaixo de pancadaria, de faca, de atropelamento, então, a gente precisa de ajuda. Esse foi o questionamento que eu fiz na reunião na quarta-feira porque a gente faz entregas também na Garda”, finaliza Débora.