
Por Cristiano Goulart e Daiane Vivatti, de Dublin
“Eu não tenho medo que me ataquem na rua. Eu tenho medo que me chamem de assassino”. Sentado na sala de um discreto apartamento na zona sul de Dublin, poucos dias antes de retornar para o Brasil, George Gonzaga Bento (36) relembra os momentos que o levaram a viver por 493 dias sob custódia na prisão de Cloverhill, zona oeste da capital irlandesa, antes de ser inocentado pela Justiça do país.
Por volta das 9h30 da noite do dia 26 de janeiro do ano passado, o brasileiro, que trabalhava provisoriamente como entregador de comida durante a pandemia de Covid-19, retornava de uma entrega para o local onde costumava aguardar por novos pedidos. A tentativa de evitar o furto de uma bicicleta, seguida de uma briga e agressões a um colega de trabalho também brasileiro, levaram George a esfaquear três pessoas, resultando na trágica morte do adolescente irlandês Josh Dunne (16).
Uma semana após ser declarado inocente, por unanimidade, das acusações que o responsabilizavam pela morte de Josh, George falou com exclusividade ao Agora Europa, com a condição de que o material fosse publicado após o brasileiro deixar a Irlanda. Nessa semana, Gonzaga retornou à terra natal.
“Eu cheguei lá [na prisão] como um monstro, né?”
As horas que seguiram a briga em East Wall foram de angústia e incerteza para George Gonzaga. O imigrante relembra que, inicialmente, não sabia sobre a morte de Dunne. Após ver a notícia nos jornais, na manhã seguinte, iniciou uma busca para obter informações sobre como deveria proceder para se entregar à polícia irlandesa.
Depois de dois dias, na tarde de 28 de janeiro, George procurou uma delegacia acompanhado de uma equipe de advogados e um tradutor. Após um longo período de interrogatório, no dia 30, Gonzaga foi submetido à Corte Criminal irlandesa. A decisão tomada pelo judiciário naquele momento determinou que o imigrante fosse encaminhado para o centro de custódia de Cloverhill, onde permaneceu por 16 meses.
O primeiro impacto veio logo na chegada ao local. Em função da pandemia, o brasileiro precisou permanecer isolado por 14 dias: “Não podia sair para nada. Eles deram um baldinho, uma caneca e diziam: ‘toma banho aí”, relembra.
Ainda nas primeiras semanas de detenção, ele recebeu atendimento psicológico. Foi em uma dessas consultas, que George foi informado sobre a presença de outros compatriotas na ala de trabalho: “A ala de trabalho é o pessoal que, geralmente, tem o comportamento mais sociável, não é alguém muito perigoso ou intimidador, coisa do tipo. E que quer trabalhar. Se manter ocupado”, explica.
O primeiro trabalho de George foi na lavanderia da casa de custódia. Com a ajuda de outro brasileiro, Gonzaga também foi informado que poderia fazer vídeo-chamadas, dependendo do tempo de custódia: “Quando você entra, você está no basic. No basic, você só tem uma ligação a cada três dias; no standard, você tem uma ligação por dia; daí você vai para enhance. No enhance, você já tem duas ligações por dia”, conta.
Nos primeiros dias após o episódio, a primeira versão sobre o ocorrido, noticiado por diversos jornais locais, é de que a vítima fatal havia tentado defender George das agressões: “Eu cheguei lá [na prisão] como um monstro, né? Um officer chegou para um outro e disse: ‘Fica esperto porque tem dois poloneses que tão falando vão pegar ele’”, relata.
O brasileiro foi então orientado a não realizar nenhuma atividade sem a companhia de um outro colega da mesma nacionalidade: “Se você vai tomar banho, vai um outro brasileiro junto; se vai para academia, vai alguém junto. Nunca faz nada sozinho’. Isso me assustou bastante”, recorda. Durante o período em que esteve sob custódia, George conviveu com seis brasileiros detidos, sendo a maioria por tráfico de drogas.
No começo, Gonzaga relembra que dividia a cela com dois detentos irlandeses. O espaço tinha dois beliches: “Eu lembro que eu tava na cama de baixo. Daí chegou um outro Irish (irlandês), aí eu pensei: na cama de baixo, se ele tentar me atacar, vai ficar muito fácil. Então, é melhor eu dar a cama de baixo para ele e ficar com a de cima. Daí ele falou: ‘Não, não, tá tranquilo’ e foi para a de cima. Daí eu deixei a de baixo e fui pra outra de cima também”, relembra.
Nas semanas seguintes, George foi transferido para a cela de um outro brasileiro: “Daí eu já fiquei mais tranquilo”. Com relação ao trabalho, alguns dias depois, Gonzaga também foi transferido, por preferência, para a cozinha da prisão, mesmo local onde trabalhavam alguns detentos que o ameaçavam no início da custódia: “Quando eu fui pra cozinha, eu fui contando a minha versão. A gente ficou de boas. Fomos virando até ‘amigos’. Era mais a visão que eles tinham, que era o que o jornal passou. O jornal passou que eu era um louco, psicopata”, lamenta.
Na ala em que George atuava, havia 52 detentos, sendo que 18 trabalhavam na cozinha. Os demais atuavam em áreas de lavanderia, lavagem industrial e limpeza dos carros oficiais que mantinham os presos ocupados. O brasileiro conta que as celas são divididas em individuais, duplas ou triplas, ocupadas por pessoas de diversas nacionalidades: poloneses, romenos, brasileiros, lituanos, dentre outros. A maioria das detenções, segundo o imigrante, eram por fraude, assaltos, agressões ou tráfico e contrabando de drogas.
Culinária brasileira na prisão
A primeira tarefa, enquanto integrante da equipe da cozinha, era preparar o café da manhã para os detentos. Diariamente, George acordava às 7h da manhã e era liberado da cela trinta minutos depois: “A cozinha era o primeiro [grupo] a trabalhar para preparar o café da manhã, o almoço, e o chá. Eles têm três refeições”. A equipe de George atuava 10 horas por dia.
O cardápio do almoço, segundo George, era sempre composto de purê de batata, batatas-fritas e frango ou hambúrguer como complemento. As únicas opções que nunca variavam do cardápio eram purê de batata e batatas-fritas: “O chá já era algo mais leve: ovo cozido com salada, uma baguete de presunto e queijo. Já era mais leve mesmo”, contextualiza.
A primeira atividade desenvolvida por quem chegava à equipe da cozinha, segundo Gonzaga, era lavar os pratos das refeições. Depois, quando novos detentos ingressam no setor, “daí você vai para a limpeza, depois você vai para os sanduíches, daí você vai pros fornos, depois vai pros boilers (caldeiras)”.
O brasileiro relata que, no período em que trabalhou preparando os sanduíches dos prisioneiros, havia bastante tempo ocioso. Sem ter muitas tarefas para cumprir nos intervalos entre as refeições, George começou a aprimorar os conhecimentos de culinária e experimentar novas receitas: “Daí eu comecei a pedir pro pessoal, pra Nanda [ex-companheira], para os meus amigos: ‘Ó, manda receitas. Manda receitas que eu vou fazer algumas coisas”, destaca.
Ele fez bolo de cenoura, tortas, pastéis e brigadeiros: “Algumas coisas assim a gente conseguia fazer para a gente e para alguns que a gente se dava bem: ‘os romenos, os vietnamitas”, cita.
Com o aprimoramento culinário, George começou a chamar a atenção dos oficiais. Em seguida, foi convidado para trabalhar na cozinha dos agentes irlandeses para fazer doces, bolos e cupcakes. Além das receitas, o brasileiro também recebeu treinamento para atuar na cafeteria: “Muitos dos officers que me olhavam de cara feia no início, foram vendo que não era assim. Tanto que recentemente eu voltei lá para pegar as minhas coisas e (…), cara, era para ser só ir e pegar e vir embora, e eu levei três horas”, pontua.
“O tempo vai ser perdido se eu deixar eles tirarem isso de mim”
Enquanto esteve sob detenção, além do trabalho da cozinha, George também frequentava a escola de idiomas e podia utilizar a academia do local: “No trabalho, em si, eles te tratavam bem”, ressalta. Além disso, participou de projetos internos de recuperação de presos, como os Samaritanos e a Cruz Vermelha, como ouvinte voluntário: “Se você quiser parar de fumar, tem os adesivos. Se você largar um vício, tem todos os incentivos possíveis”, diz.
Em Cloverhill, George se dedicou a aprimorar os estudos da língua inglesa através dos cursos oferecidos na prisão, além de participar das aulas de alemão. O brasileiro disse que também tentou estudar espanhol, mas não havia turmas disponíveis para o nível em que se encontrava. Gonzaga também leu 23 livros durante o período em que esteve detido.
Além disso, o imigrante também fez curso de primeiros-socorros, de soft-skills, de tecnologia da informação, de health-fitness, limpeza industrial e de movimentação manual de cargas (manual handling): “Independente se eu gostasse ou não, eu estava lidando com o inglês”, justifica.
Além da atividade diária na cozinha, às terças e quintas, o brasileiro fazia academia. Às segundas, quartas e sextas, ia para a escola. Aos domingos, frequentava a missa e realizava corridas no jardim da prisão: “Eu sempre pensava assim: ‘eu tô preso, mas o tempo vai ser perdido se eu deixar eles tirarem isso de mim’”, reflete.
Para o brasileiro, a falta de convívio com a família foi o maior desafio durante o período em que esteve preso: “O fato de estar perdendo aniversários, perdendo o convívio com a família, estar longe dos meus amigos. No começo, foi mais difícil, porque eu não confiava em ninguém. Eu sempre me perguntava ‘por que?’. Se eu chegasse 10 segundos depois [ao McDonald ‘s], eu não teria visto o cara roubando, não teria ido atrás dele”, salienta.
George afirma que não tinha receio de ser atacado na prisão, mas que o maior medo era o tempo que teria de permanecer no sistema penitenciário irlandês: “Imagina sair e os filhos já estarem grandes, cara. E a vergonha? Eu tenho uma menina de 7 e um menino de 5 anos. E a vergonha para a minha família. Minha família nunca teve nenhum problema”, pontua.
O medo da sentença
Apesar do receio em relação ao tempo que ficaria detido, George alega que não acreditava na possibilidade, por exemplo, de ser condenado à prisão perpétua: “Isso, eles deixaram bem claro pra mim que as chances seriam bem baixas, seriam 10%. Isso antes de ver os vídeos. (…) Porque os vídeos me passaram mais essa confiança, porque os vídeos mostram que, em todo momento, a gente tentava sair, e eles vinham atacar. A gente tentava sair, e eles nos puxavam para a briga”, lembra.
A estratégia dos advogados do imigrante foi apresentar o argumento de autodefesa, tendo em vista que os dois brasileiros tiveram de enfrentar 12 oponentes e estavam tentando evitar um furto: “Mas o fato de um adolescente ter morrido, isso poderia pesar”, complementa. Foi esse fator que colocou em dúvida a possibilidade do brasileiro ser totalmente absolvido de todas as acusações.
O julgamento
Nas sessões do julgamento que resultou na absolvição de George, o brasileiro também teve que compartilhar o mesmo espaço com os familiares da vítima, como a mãe de Josh Dunne: “Eu evitava olhar para ela (…) porque foi uma perda. Mesmo que não tenha sido minha intenção, mas foi uma perda. Às vezes, eu pensava: ‘eu tô preso, eu tô sem encontrar a minha mãe, mas a minha mãe consegue me ver; ela, não’. Eu sou pai, tenho mãe, eu conseguia ponderar”, explica.
George afirma ainda que, sempre que teve oportunidade de falar nos depoimentos, pediu perdão pelo ocorrido à família da vítima: “É algo que me incomoda saber que eu vou carregar isso pelo resto da minha vida, sabe? Uma vida foi tirada pela minha mão. (…) O pessoal fala hoje: ‘você tem medo de andar aqui na rua, de alguém te atacar?’. Eu falo: ‘Não, meu medo é de alguém me parar e falar assim: ‘você é um assassino’. Se alguém me atacar, eu vou tentar me defender porque eu valorizo a minha vida. (…) Agora, se alguém falar: ‘você é um assassino’, eu não vou saber responder. Querendo ou não, alguém morreu. Mesmo que não fosse minha intenção, alguém morreu”, lamenta.
A decisão
Antes do julgamento final, na primeira quinzena de junho, George fez uma promessa de não comer nada com açúcar até a data em que se veria frente-a-frente com o júri para a sentença. Embora estivesse confiante, o brasileiro não descartava a possibilidade de receber penas que o levariam a viver por anos na prisão: “Eu ficava no dilema: a fé é você crer em algo que não existe, mas, ao mesmo tempo, eu tinha que estar preparado para algo ruim porque já rolava o boato que, se eu fosse para determinadas cadeias, alguém ia me pegar lá. (…) Estavam até falando que tinha um prêmio pela minha cabeça”, narra.
No dia em que recebeu a sentença, George recorda ter levado um chocolate para a Corte Criminal: “Pensei: ‘eu vou levar porque hoje eu vou celebrar’. Daí eu lembro que eles me pegaram cedo. Eu ia para a recepção, eu trocava de roupa, e eu ficava numa salinha lá. Aí na minha cabeça, vinha isso: ‘vai ser a última vez que eu vou ficar aqui”’, recorda.
O brasileiro relata que um dos momentos mais difíceis era quando precisava ser algemado para o transporte entre a casa de custódia e a Corte Criminal de Dublin. Outro ponto importante para George era poder ver e sentar próximo da mãe nos dias que tinha de ir ao tribunal: “Às vezes, os oficiais deixavam a minha mãe sentar perto. Outras vezes, não. Mas, dessa vez, eles foram super-gente-boa. Deixaram ela sentar do meu lado. Daí eu abri o chocolate e dei um pedaço pra minha mãe e pro meu sobrinho, e ela me perguntou: ‘O que é isso?’. [George] ‘Porque hoje a gente vai celebrar’.
O imigrante recorda ainda o momento em que um representante do júri afirmou que o grupo já havia chegado a uma decisão: “Quando passou o almoço, ele [o juiz] perguntou: ‘Vocês [jurados] já chegaram a um veredicto: ‘chegamos’. Daí o coração já acelera, a mão começa a suar gelado”, relembra.
A decisão unânime dos 12 jurados foi entregue ao juiz do caso no dia 14 de junho: “Daí eles entregaram o papel para o representante do juiz e ele começa a ler: charge (acusação) número um: not guilty (inocente). (…) Charge número dois: not guilty. Charge número três: not guilty. Daí ele vira a página. Charge número quatro: not guilty. Daí eu já abaixei a cabeça pra agradecer e meu advogado pulou, e veio me abraçar”, descreve.
O brasileiro deixou o tribunal logo após o julgamento. Após permanecer algumas semanas no país, acompanhado de alguns familiares, decidiu retornar à terra natal. Gonzaga não descarta retornar à Europa no futuro, mas não pretende mais residir na Irlanda. “O intuito é ir para o Brasil, ver a minha família, pôr a cabeça no lugar, absorver tudo isso, porque eu ainda tô assimilando o milagre que foi”, finaliza.
Relembre o caso
George Gonzaga Bento atuava como segurança em bares e pubs de Dublin antes da pandemia de Covid-19 parar o país. Sem trabalho, o brasileiro decidiu atuar como entregador de comidas na capital irlandesa. O imigrante residia na zona leste da cidade, em East Wall, região próxima ao porto de Dublin. Por uma questão de conveniência, George procurava trabalhar sempre nas zonas de onde morava. Além disso, devido ao grande número de restaurantes na região, o bairro também se destaca por ser um atrativo para diversos outros entregadores de comida por aplicativo.
“Geralmente, a gente sempre ficava ali perto do McDonald’s porque era próximo da minha residência. Então, a gente até já tinha uns amigos em comum porque também outras pessoas moravam ali perto. Naquele dia específico, já estava bem fraco ali no McDonald’s, que era onde mais chamava. Eu aceitei uma outra corrida um pouco mais distante”, relata.
Para os entregadores, segundo George, o mais importante é não ficar muito tempo ocioso, sem entregas. Com a demanda abaixo do normal naquela data, o brasileiro aceitou realizar o pedido para um outro estabelecimento, uma pizzaria. Após finalizar a entrega, ele recebeu um novo pedido, mas, desta vez, com destino ao centro da cidade: “Como eu não gostava de trabalhar no centro, justamente porque era muito perigoso, então eu voltei para o McDonald’s”, conta.

Os próximos instantes mudariam a vida de George para sempre. Ao se aproximar do McDonald’s de East Wall, que fica ao lado de um supermercado da rede Lidl, o brasileiro testemunha uma tentativa de furto a uma bicicleta elétrica. George afirma que o criminoso conseguiu remover o cadeado da bike e tentava transportá-la em uma moto:
“Quando eu estava chegando no McDonald’s, eu vi ele meio com dificuldade pra sair na moto. Aí eu achei estranho. Eu vi, cheguei, daí quando eu cheguei na esquina, entre o Lidl e o McDonald’s, eu vi um conhecido. Não era nem amigo, era um conhecido”, descreve.
O conhecido era Guilherme Queiroz. George afirma ter alertado o brasileiro sobre o furto em curso. Enquanto George permanecia monitorando a situação na Avenida East Wall, Guilherme tentava localizar o dono da bicicleta dentro do mercado Lidl, mas sem sucesso. Em seguida, a dupla decidiu interceptar o crime e recuperar a bicicleta furtada.
“Quando a gente chegou – nosso inglês era bem ruinzinho -, a gente estava nervoso. A gente só falou assim: ‘devolve a bicicleta’. Ele perguntou assim: ‘A bicicleta é sua?’. ‘Não, é do meu amigo’” – responderam. “Ele falou: ‘Então, f* off”. Começou a xingar a gente. ‘A bicicleta também não é sua, a gente só quer a bicicleta de volta’. Ele não desceu da moto, mas a bicicleta já estava no chão. Nesse primeiro momento, ele ficava só rodeando a moto”, afirma.
Os dois entregadores acreditavam que, ao abordar o criminoso, ele se assustaria com o fato de estar em desvantagem: “Ele não se assustou tanto, né? Ele ficou rodando, rodando, tentando chutar a gente, chutar a bicicleta”, diz Gonzaga. A bicicleta de Guilherme foi a primeira atingida pelo motoqueiro. George, notando as agressões, preferiu deixar o instrumento de trabalho próximo ao mercado Lidl, um pouco mais distante do local.
“Daí ele pára a moto, ele desce da moto, e ele finge que ia tirar alguma coisa, uma faca, alguma coisa do tipo. Daí foi onde eu mostrei que eu tinha uma faca pra ele: “Eu não quero problema, mas se você quiser, a gente tem”. Aí ele voltou pra moto e a gente pensou: agora vai embora. Daí andou acho que uns cinco metros mais de moto, e eu acho que nessa hora ele viu os outros adolescentezinhos”, descreve.
Em seguida, o motoqueiro retornou e ambos começaram a trocar xingamentos: “A gente também xingou, só que o nosso vocabulário não era tão extenso quanto o dele. Então a gente também trocou alguns insultos. Só que nessa [hora] a molecada já estava chegando, estava se aproximando. Daí quando eles chegaram mais ou menos do outro lado da rua, aí eu falei pro Guilherme: ‘Guilherme, não vale a pena mais. Não vai dá pra gente fazer alguma coisa.’ Porque eles estavam em 8, 9 de molecada”, relembra.
Os dois brasileiros decidiram deixar o local. Com a bicicleta em um lugar seguro, a fuga ficou mais fácil para George: “Só que a do Guilherme ainda estava no chão. Foi quando o Guilherme foi tentar pegar ela no chão, que eles atacaram ele. Esse grupo”, afirma. “A gente já não estava prestando atenção no que eles estavam dizendo, mas depois, nos outros depoimentos, ele fala pros meninos: back me up, pra eles cobrirem ele, né? Daí vêm dois. Primeiro, dois atravessam, seguram a moto. Daí ele vai, desce da moto, e fala pro Guilherme: ‘quem é o homem durão agora? Vamos ver quem é o homem durão agora’, contextualiza.
George afirma que o colega foi atacado de costas, enquanto tentava erguer a própria bicicleta para deixar o local. Segundo o brasileiro, nesse momento, Guilherme tentou empurrar o motoqueiro, mas foi atacado por um trio de adolescentes. George, ao notar a desvantagem do amigo, tentou intervir: “Daí eu empurro um pra um lado, daí um outro vem pra cima de mim e mais um pra cima do Guilherme. Até então, a gente tá se empurrando, chutando, trocando socos. Só que quando eu vejo que estão vindo mais – os outros que estavam vindo do outro lado da rua estão atravessando – eu pego a minha faca”, conta.
Não é possível afirmar o que teria ocorrido com Guilherme ou George, caso o brasileiro não tivesse optado por pegar a faca para se defender. O ato, no entanto, mudou o rumo dos envolvidos na briga.
“Só que foi muito rápido. Eu pego a faca com o intuito de assustar. Eu peguei a faca, eu não fui pra cima dele [do motoqueiro], ele veio pra cima de mim. Nessa que ele veio pra cima de mim, me dando socos, chutes e tal, eu acertei esse menino. O que faleceu. Daí ele sai, de lado, e continua andando. Aí um outro vem pra cima de mim. Aí eu também acerto ele. Daí meio que eles gritam, entre eles, que eu tinha a faca. Nesse momento, eles abrem e saem de cima do Guilherme. Aí eu vou lá, pego o Guilherme. Ele já está sangrando, todo cortado”, conta.
George afirma que tentou novamente deixar o local com o colega, mas sem sucesso: “Ele já tava bem confuso, meio desnorteado, e eu falei: ‘Guilherme, vamos embora, vamos embora’. Daí eu ajudei ele a pegar a bicicleta dele, levantei a bicicleta dele e falei: ‘vamos embora’. Daí ele tava tentando subir na bicicleta. Eu pensava que ele tinha condições de sair andando nela. Eu peguei a minha e fui pedalando novamente. Depois que eu andei uns 4, 5 metros, eu olho pra trás, o Guilherme tá no chão e tem mais três batendo nele. Daí eu volto de novo, novamente pego a faca e acerto um. Esse já era um outro grupo, não era o grupo dos adolescentes. Era um grupo que chegou depois”, salienta.
O brasileiro relembra que quanto mais tempo os dois ficassem ali, mais difícil se tornaria a fuga. Em nenhum momento, relembra George, a dupla recebeu ajuda: “Carro tava passando, moto tava passando: ninguém parou.”Daí chega o dono da bicicleta, nesse momento. Daí ele fala: “eu sou o dono da bicicleta.” Ele chegou de carro, eu não sabia de quem era o carro, nem nada. Eu falei: “cara, o meu amigo tá mal, ajuda ele”. Eu falei: ‘ajuda ele que eu não posso ficar aqui’. Foi o momento que eu fui pra minha casa. Daí eu fiz um caminho totalmente diferente, porque o meu medo era deles me seguirem”.
O motoqueiro que tentou furtar a bicicleta nunca foi judicialmente responsabilizado pelo ato. Além disso, durante o julgamento, não pôde ter o nome citado.
O adolescente
Josh Dunne, de 16 anos, jogava futebol nas categorias de base do tradicional clube dublinense Bohemians F.C., conhecido por carregar as bandeiras pró-imigração e dos direitos humanos. O clube divulgou, na época, uma nota de pesar após a confirmação do óbito:
Todos nós, na Bohemians, ficamos arrasados ao saber da morte do jogador do Bohs-SKB J. D., que morreu em circunstâncias trágicas na noite passada.
J. era um jovem jogador talentoso e querido, de quem todos os seus ex-companheiros e treinadores sentirão saudades(…).
O funeral de Josh ocorreu no dia 6 de fevereiro do ano passado na igreja da Virgem Maria, em Ballymun, no norte da capital irlandesa.