Lisboa, Portugal.
Quando viu, há pouco mais de um mês, a repercussão em Portugal sobre o movimento #Metoo (eu também, em tradução literal), a brasileira Ana*, de 32 anos, teve uma mistura de sentimentos. Ficou feliz por, finalmente, o assunto ser debatido no país. Por outro lado, também sentiu desesperança. Ana não era a única mulher a sofrer assédio sexual no trabalho. No entanto, por ser negra, imigrante e desempregada após ter ameaçado denunciar o que sofria do antigo chefe, sabia que a justiça para ela e outras estrangeiras era mais difícil de conseguir.
O #Metoo, que começou em 2017, é um movimento contra o assédio sexual de mulheres, que incentiva as vítimas a denunciarem os crimes publicamente para que mais pessoas se sintam encorajadas a fazer denúncias. Em Portugal, a iniciativa ganhou força no final abril, quando a atriz Sofia Arruda relatou, em entrevista, que foi afastada da televisão após ser assediada por um produtor do canal.
Depois que o caso veio à tona, ao menos outras 20 mulheres utilizaram as redes sociais para contar que também foram vítimas de assédio, colocando o #Metoo entre os principais assuntos da internet nas últimas semanas, de acordo com um levantamento realizado pelo Agora Europa. No entanto, se para as portuguesas falar abertamente do assunto é um desafio, para as imigrantes, as dificuldades são ainda maiores.
“As brasileiras aqui em Portugal ainda são vistas como objetos”, relata Ana, que se mudou do Rio de Janeiro para a cidade do Porto em 2018 em busca de melhores oportunidades de vida. A imigrante, recém chegada e ainda sem estar legalizada, sofreu por mais de um ano abusos vindos do ex-chefe. Ao não aguentar mais a situação, ameaçou denunciá-lo, na tentativa que os crimes parassem.
“Acabei sendo demitida e ameaçada. Ele me falou que nunca ninguém acreditaria em mim, por ser brasileira, que somos todas p****”, relembra a imigrante. Os reflexos da relação de trabalho abusiva ainda se fazem presentes na vida de Ana, que sentiu medo de represálias e de ser julgada e, com isso, acabou não denunciando o ex-patrão. Com a pandemia, a carioca não conseguiu emprego e, consequentemente, não está legalizada por não possuir um contrato de trabalho.
Barreiras para denunciar
Além do medo de serem desacreditadas por serem brasileiras, a fragilidade financeira e a condição de imigrante são fatores que fazem as vítimas aguentarem caladas os crimes no trabalho. Para a pesquisadora brasileira Lígia Melo, “a necessidade de se sustentar ainda é um fator que as fazem relevar muitos comentários”, explica Lígia, que faz mestrado na Universidade de Braga e pesquisa o acesso das brasileiras ao mercado de trabalho em Portugal.
“Temos que sempre lembrar do contexto que essas mulheres migram, muitas entram como turista, então dependem de conseguir um contrato de trabalho para realizar a manifestação de interesse [pedido na Imigração para residência]. Então, não podemos exigir que elas denunciem um caso de xenofobia no ambiente de trabalho”, destaca Lígia.
Segundo a pesquisadora, os depoimentos coletados no estudo até agora demonstram que ser vítima de assédio em Portugal é uma regra, não uma exceção: “As imigrantes ainda são vítimas de assédio por parte de empregados e clientes. As que não passaram por isso se designam como sortudas, porque sabem que são exceção”, ressalta a imigrante, que começou o mestrado em 2019 e está na reta final do curso.
A Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR), órgão público ligado ao Alto-Comissariado para as Migrações, não possui dados específicos de assédio a mulheres imigrantes no mercado de trabalho. No entanto, apenas em 2020, foram recebidas 655 denúncias de xenofobia.
De acordo com os dados obtidos pelo Agora Europa, o número representa um aumento de 50% no comparativo com o ano anterior. Atualmente, cerca de nove milhões de estrangeiros possuem residência ou estão em processo de legalização no país.
Um espaço de alívio
Algumas pessoas podem enxergar o #Metoo, já realizado em diversos países do mundo, como uma punição aos abusadores. Nos Estados Unidos, por exemplo, um levantamento realizado pelo The New York Times, o primeiro jornal a divulgar reportagens sobre o movimento, mostra que 201 homens perderam seus cargos após denúncias de assédio e muitos foram processados.
No entanto, para a advogada Priscila Aguiar, brasileira que atua em Portugal, a iniciativa vai muito além da questão jurídica ou punitiva: “O #Metoo serve como um espaço de alívio, e, com isso, mais mulheres percebem que aquilo (ou seja, o assédio) não aconteceu apenas com ela, não foi culpa dela. Porque esta é uma das grandes questões quando tratamos de assédio: a culpabilização da vítima”, ressalta a especialista.
A profissional enfatiza que as mulheres assediadas ainda são questionadas: “Quando há repercussão de algum caso de assédio, a primeira coisa a ser questionada é a veracidade do relato da vítima. Onde ela estava? Como estava vestida? O que ela fez? Isso faz com que a vítima se isole, não queira falar sobre isso, muito menos denunciar”, argumenta Priscila.
Para a advogada, outro fator que dificulta as denúncias está no fato de o movimento ser visto socialmente, por algumas pessoas, como algo que vai “estragar a vida dos homens” que são acusados dos crimes. “É muito comum, em casos de assédio e/ou violência doméstica, ao formalizarmos a queixa-crime ou ao narrar o ocorrido, ouvirmos ‘mas isso estragará a vida dele’”, explica Priscila.
Esse é outro ponto emblemático e ambíguo do #Metoo: a divulgação do nome dos abusadores, especialmente nas redes sociais. Se a vítima expõe o nome do agressor, corre o risco de ser processada por calúnia, por exemplo. No entanto, muitas vezes ao não dizer abertamente o nome, é acusada de estar mentindo.
A orientação da advogada é “nunca divulgar o nome do assediador”, por mais que seja difícil provar os crimes: “Numa situação desta, ao divulgar em redes sociais o nome do assediador, caso a vítima não consiga comprovar tal crime judicialmente, ela pode ser denunciada por um crime contra a honra”, orienta a especialista.
Se as brasileiras ainda enfrentam receios de denunciar casos de assédio e xenofobia aos órgão oficiais ou publicamente, encontraram um espaço seguro e anônimo na página “Brasileiras Não se Calam”, nas redes sociais. Formado para apoiar conterrâneas que moram no exterior, o projeto recebeu, de junho a dezembro de 2020, um total de 462 relatos e denúncias e discriminação, distribuídos em 34 países. Destes, 297 casos foram em Portugal.
Em um dos relatos, disponíveis na página, uma brasileira conta que uma professora portuguesa disse que ela deveria fazer uma cirurgia para diminuir o tamanho dos seios “porque eram grandes de mais e tirava a atenção dos rapazes em sala de aula, pois, nós, brasileiras, gostamos muito de chamar a atenção dos homens”. Em outro relato, uma imigrante conta que recebeu mensagens obscenas pelas redes sociais de um colega de trabalho e ele ainda a insultou para os supervisores.
Segundo as voluntárias do Brasileiras Não se Calam, a maior parte das denúncias e relatos envolvem assédio: “Temos recebido muitos relatos de assédio nas universidades por parte de professores e colegas; no local de trabalho por parte dos patrões e dos clientes; nos relacionamentos amorosos heterossexuais por parte dos parceiros e de seus familiares; e, até mesmo, na rua por parte de pessoas desconhecidas”, pontuam.
O passado, o presente e o futuro
As entrevistadas desta reportagem avaliam que o assédio sofrido pelas brasileiras em Portugal tem raízes antigas. Para a advogada Priscila Aguiar, a maneira como o próprio governo brasileiro divulgava o país no passado deixou marcas que refletem até hoje.
“As infames campanhas (publicitárias) do Ministério do Turismo brasileiro, especialmente nas décadas de 1970 e 1980, exploraram a mulher brasileira como atrativo sexual”, pontua a advogada. “Ela deixa de ser um indivíduo e passa a ser apenas um objeto, objeto este que pode ser tratado de qualquer forma”, complementa Priscila.
Para a pesquisadora Lígia Melo, a campanha citada, que mostrava fotos de mulheres brasileiras seminuas, tornou o Brasil conhecido como o país de mulheres bonitas, simpáticas e sempre disponíveis: “Isso é algo muito enraizado ainda no mundo”, argumenta a mestranda.
Em Portugal, relembra Lígia, existe ainda outro rótulo adicional para as brasileiras: o de serem “ladras de marido”. No início dos 2000, quando começou a imigração para o país, um grupo de mulheres portuguesas acusou as imigrantes de “roubarem os maridos”.
O movimento ficou conhecido como “Mães de Bragança” e teve grande repercussão no país, com a divulgação na imprensa e um abaixo assinado pedindo providências às autoridades da cidade, que fica no Norte do país. De acordo com a pesquisadora, mesmo passados quase 20 anos, o rótulo ainda permanece e prejudica as brasileiras: “A mulher brasileira tem que se policiar na maneira como ela se veste, como fala, qual o tratamento dado a um homem”, complementa.
Debater e denunciar
Lígia analisa que a educação é a saída para que os pré-conceitos estabelecidos no passado sejam ultrapassados. “Acredito que isso é uma questão de educar a população a ver as imigrantes brasileiras além do estereótipo, porém existem canais oficiais do governo para realizar as denúncias”, argumenta a acadêmica enfatizando a necessidade de que também sejam tomadas medidas oficiais por parte de quem é vítima de assédio ou discriminação.
E a chegada do movimento #Metoo em Portugal pode ser vista como um passo de fortalecimento e encorajamento também para as mulheres imigrantes: “Mesmo tardio, é algo positivo e que pode trazer algumas mudanças na maneira como a violência contra mulheres vem sendo enxergada e enfrentada em Portugal”, defendem as voluntárias do Brasileiras Não se Calam.
“Cada debate, cada discussão, cada vez que o tema assédio é tratado pela sociedade como é, e não escondido, é um avanço”, ressalta a advogada Priscila Aguiar.
Como buscar ajuda
O grupo Brasileiras Não se Calam oferece orientação jurídica e psicológica às vítimas, de maneira gratuita. A iniciativa possui uma rede de voluntárias de diversas profissões que se uniram para ajudar as imigrantes que passam por dificuldades. É possível contatar o grupo através do email brasileirasnã[email protected] ou nas redes sociais.
Em Portugal, além da polícia, é possível apresentar a queixa na Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial. Depois da denúncia, o órgão apura o caso ou envia para outra entidade competente, dependendo do crime. É permitido, ainda, realizar a denúncia de maneira anônima, através do formulário disponível aqui.
Para casos específicos relacionados ao meio profissional, como assédio moral e exploração, também é possível apresentar denúncia na Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), órgão público que fiscaliza o ambiente de trabalho no país. No site consta um link específico para realização de denúncias.
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