Investigação estima 4,8 mil abusos sexuais na Igreja Católica em Portugal


Pelo menos 4,8 mil menores foram vítimas de abusos sexuais envolvendo a Igreja Católica em Portugal. A estimativa foi apresentada pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa, nesta segunda-feira (13), como resultado de uma investigação que levou cerca de um ano. Segundo os dados divulgados, em 96,6% dos testemunhos ouvidos pelos pesquisadores o abusador era do sexo masculino e 77% relataram ter sido vítima de padres.

O número estimado de crianças e adolescentes abusadas é relativo ao período de 1950 a 2022. A comissão validou 512 testemunhos recebidos por telefone e um questionário online. O trabalho foi iniciado no mês de janeiro de 2022. Para chegar ao cálculo estimado, o grupo utilizou o relato das vítimas e as informações que prestaram sobre outros casos de abusos que tiveram conhecimento.

“A nossa estimativa aponta para que as pessoas vítimas tenham conhecimento de aproximadamente 4300 outras vítimas (4303). Assim, estimamos um número potencial de 4815 vítimas, valor que resulta da soma dos testemunhos individuais (512) com esta estimativa (4303)”, ressalta o relatório. A comissão é coordenada pelo médico psiquiatra Pedro Strecht e conta com a participação de outros profissionais das áreas da saúde, sociologia, antropologia e direito.

As 486 páginas do documento, disponibilizado publicamente, trazem uma série de dados e relatos com detalhes dos crimes, com ocultação dos nomes das vítimas e dos acusados. De acordo com a publicação, a maior parte dos abusos (23%) aconteceu em seminários, seguido de igrejas (18,8%), confessionário (14,3%), casa paroquial (12,9%) e escola religiosa (6,9%).

Em relação ao perfil das vítimas, a maior parte das crianças foi violada entre os 10 e os 14 anos de idade, sendo a média de 11,2 anos. Os meninos são maioria, vítimas em 57,2% dos casos, enquanto meninas totalizam 42,2%. O documento aponta que é uma “porcentagem muito alta”, se comparado a outros estudos semelhantes.

Os crimes relatados aos membros da comissão envolvem toques em órgãos sexuais, masturbação, sexo oral e sexo anal. O maior número de abusos sexuais aconteceu entre o início da década de 1960 e 1990, de acordo com 58,3% dos testemunhos. De 1991 até hoje, concentram-se 21,9% dos casos.

Menina de 7 anos abusada no confessionário

Uma das vítimas relatou que, quando tinha apenas sete anos, no ano de 1970, foi vítima de abusos por parte de um padre: “A gente estava no confessionário e ele começava a tocar-nos pelas pernas acima até chegar bem onde queria e, pelo meio, dizendo obscenidades para nós e para meu irmão mais velho que estaria pelos 13 a 14 anos”, conta.

Outra vítima, na época com 12 anos, afirmou, em depoimento, que relatou aos superiores do grupo de escoteiros católicos sobre os abusos que sofria de um padre: “Não aconteceu nada. Nada foi feito. Os escoteiros foram expulsos e o padre ainda lá está, e eu sei que faz o mesmo. Fiquei com muita vergonha e com pesadelos. Tenho muita vergonha ainda e acho que sou suja”, desabafa a vítima.

Em outro relato, vindo de um antigo escoteiro na época adolescente, o rapaz diz que o padre levava os meninos para a sua tenda durante acampamentos: “Era em silêncio. Ia subindo pelo corpo, das pernas, até cá acima, virilhas e ia começando a aproximar-se dos genitais onde acabava por tocar, primeiro por baixo da roupa, depois chegava a estar mais à vontade e, por último, já baixava a minha roupa de baixo”, relembra sobre os abusos.

Outra vítima, de nove anos, disse ter sido abusada durante dois anos por um padre de 45 anos em uma igreja: “Todos os meses do ano menos julho e agosto, sábado, às 15h”. Hoje, adulto, ressalta o impacto que o abuso causou em sua vida: “Nunca consegui ter uma relação íntima. Não aceito ser tocado, impossível, vejo o sexo como coisa suja não suporto ser beijado e não gosto beijar ninguém”, escreveu no inquérito.

No que diz respeito à frequência dos crimes, 57% das vítimas relataram terem sido abusadas mais de uma vez. Em 27,5% dos casos, o tempo de duração dos abusos foi superior a um ano. De acordo com o relatório, “na maioria dos casos” as vítimas recebiam ordem para manter o que aconteceu em segredo, “sendo comum que a pessoa abusadora recorresse, por vezes, a diversas formas de chantagem sobre a criança”. 

Vítimas desacreditadas

Dos 512 testemunhos, 48,8% falaram sobre os crimes pela vez no inquérito da comissão. Medo, vergonha e culpa foram citados como alguns dos principais obstáculos para o silenciamento. Ao mesmo tempo, 51,8% das pessoas ouvidas afirmaram ter relatado os crimes. No entanto, em 56,2% dos casos a vítima foi desacreditada.

O bispo José Ornelas, presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), pediu “perdão a todas as vítimas”, classificando os abusos como “uma ferida aberta, que nos dói e nos envergonha [a Igreja]”. O líder religioso também ofereceu acompanhamento às vítimas:

“Temos consciência de que nada pode reparar o sofrimento e a humilhação que foram provocados a vós e às vossas famílias, mas estamos disponíveis para vos acolher e acompanhar na superação das feridas que vos foram causadas e na recuperação da vossa dignidade e do vosso futuro”, declarou o bispo. Ornelas afirmou ainda que não haverá tolerância com os abusadores.

25 casos enviados ao Ministério Público e recomendações

Segundo a comissão, o objetivo da investigação é criar um “elemento de ligação” entre as vítimas e as autoridades. Dos mais de 500 relatos, 25 foram enviados ao Ministério Público com nomes e localização dos suspeitos. Ainda de acordo com o relatório, alguns acusados já morreram, enquanto outros ainda praticam funções religiosas.

Além do envio da investigação para as autoridades competentes, o grupo elencou uma série de recomendações para evitar novos casos, como a criação de uma nova comissão de estudo e acompanhamento do tema, o reconhecimento, por parte da Igreja, da existência e extensão do problema e cobrança pelo compromisso “com a prevenção futura”. Ainda é recomendado o cumprimento do “conceito de tolerância zero” para esse tipo de crime, proposto pelo Papa Francisco, e o dever da instituição em colaborar com o Ministério Público nas investigações.

Outras medidas propostas são o fim de espaços fechados para locais de prática religiosa, além da criação de manuais de boas práticas e formação dos membros da Igreja na área de sexualidade. Também é recomendado que a Igreja promova, em articulação com o Serviço Nacional de Saúde (SNS), apoio psicológico continuado às vítimas do passado, atuais e eventuais futuras.

O presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, recebeu uma cópia do relatório e declarou que a Igreja Católica possui a responsabilidade de “definir uma orientação para o futuro, prevenindo e impedindo a repetição de tais abusos e encobrimentos”, além de fornecer apoio psicológico às vítimas. O chefe de estado também recomenda mudanças na lei, que “conduzam a uma mais célere investigação e atuação judicial” e “reforçar a prevenção e punição”.

Mudanças na lei

A maior parte dos crimes relatados já prescreveram, conforme a lei portuguesa. A legislação atual prevê que vítimas menores de idade podem denunciar os abusos até os 22 anos. Caso a denúncia seja realizada antes de completar 23 anos, o prazo de prescrição fica suspenso.

No entanto, a comissão aconselha que a idade seja estendida até os 30 anos, para oferecer mais tempo às vítimas. Em apoio à recomendação, Rebelo de Sousa sugeriu, por meio de nota, que ocorra uma mudança na legislação. Ao menos três partidos portugueses anunciaram, ainda nesta tarde (13), a criação de propostas de lei nesse sentido. O objetivo é dar mais tempo às vítimas para que denunciem os crimes.

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