Brasileiras criam cartilha para ajudar mulheres vítimas de violência na Irlanda


Com o alerta “Você não está sozinha”, o Grupo Mulheres do Brasil – Núcleo Irlanda criou uma cartilha para auxiliar brasileiras que estejam passando por algum tipo de violência. O material foi produzido integralmente em português e traz orientações tanto para quem está em situação de risco imediato (e deve ligar para a polícia local), quanto detalhes para ajudar possíveis vítimas a identificar se estão em um relacionamento abusivo.

O conteúdo também possui uma lista de entidades e instituições que podem ser contactadas por mulheres em busca de ajuda. É o caso da organização nacional Woman’s Aid, com atendimento 24 horas por dia, sete dias por semana. Inclusive, a ONG oferece atendimento com intérprete em português, que pode ser solicitado pela vítima. A Embaixada do Brasil em Dublin, parceira do projeto, também pode ser acionada por imigrantes em busca de auxílio.

A Cartilha da Mulher Brasileira na Irlanda explica que a violência doméstica ocorre quando um parceiro utiliza algum tipo de abuso ou de controle para exercer poder em um relacionamento afetivo. Os tipos de abuso, no entanto, são muitos e vão além de agressões físicas: “No Brasil a gente cresce em uma cultura onde a violência é o olho roxo. Então, é muito difícil de você entender outros tipos de violência”, explica a co-líder do Grupo Mulheres do Brasil Núcleo Irlanda, Élida Sousa.

Para auxiliar na identificação dos tipos de violência, o material explica que o abuso pode ser psicológico ou emocional, físico, sexual, financeiro ou patrimonial, além de assédio, perseguição ou até mesmo infantil, muitas vezes contra os filhos. Entre as ações que configuram violência estão a parceira ser constantemente criticada, agredida, monitorada, sofrer ameaças de morte, ser xingada com palavras de baixo calão, entre outras.

De acordo com Élida, o objetivo da cartilha é fazer com que mais mulheres identifiquem que estão sofrendo violência e busquem ajuda, já que muitas vezes as vítimas não conseguem enxergar a situação em que se encontram. Além do Woman’s Aid, a ajuda também pode ser encontrada diretamente com o Grupo Mulheres do Brasil núcleo Irlanda, que desde 2020 possui um serviço de atendimento totalmente gratuito para brasileiras que sofrem violência.

Juntamente com outras voluntárias, Élida faz o atendimento das vítimas e explica que a assistência é livre de preconceitos, com o real objetivo de auxiliar as mulheres a encontrarem soluções: “O processo de acolhimento é você entender que a pessoa não está pronta ainda pra olhar e falar ‘eu estou sofrendo violência’. Ninguém quer sofrer violência da pessoa que ama. Então, é importante escutar e entender que ela vai ter o tempo dela. A gente não tem o direito, em nenhuma situação, de falar o que é certo e errado”, explica a co-líder da entidade.

Pedidos de ajuda de brasileiras bate recorde em janeiro

O núcleo começou os trabalhos há quase três anos, com as co-líderes Élida Sousa e Luz Pereira, e viu um aumento exponencial no número de pedidos de ajuda de brasileiras sofrendo violência na Irlanda. No primeiro ano, em 2020, foram quatro atendimentos que aumentaram para 13 em 2021 e 32 em 2022. Neste ano, no entanto, foram 14 novos casos somente no mês de janeiro.

A assistente social Helen Brito Arruda, também voluntária do Grupo Mulheres do Brasil, relembrou que o ano começou com o feminicídio de uma brasileira, o que pode ter chamado a atenção de outras mulheres vivendo em situação de violência. Bruna Fonseca foi assassinada em Cork, no sul da Irlanda, e o ex-companheiro foi indiciado pelo crime. O feminicídio aconteceu pouco mais de um ano depois de outra brasileira, Fabíola Câmara, ser morta pelo companheiro na Irlanda.

Além disso, a profissional acredita que mais pessoas estão recebendo informações sobre os tipos de abuso e buscando auxílio: “A violência aumentou? Não! Ela sempre existiu. Aos poucos esse tema está cada vez sendo mais falado. É um tema pesado? Sim. Mas se é pesado pra gente, imagina pra mulher que está vivendo em situação de violência”, destacou Helen, emocionada, no evento de lançamento da cartilha. 

O aumento de casos, porém, ainda assusta as participantes do movimento, já que segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), somente 10% dos casos de violência contra a mulher são reportados. Com isso, estima-se que o número de brasileiras vítimas de abuso seja muito maior. Por isso, a cartilha “tem o objetivo de [fazer a informação] chegar cada vez mais e mais rápido na comunidade brasileira”, explica Helen.

Cartilha foi desenvolvida pelo Grupo Mulheres do Brasil núcleo Irlanda. Foto: Daiane Vivatti

“Será que isso é normal?”

Quando Roberta* deixou o Brasil para viver na Irlanda em 2018, não imaginou que cerca de três anos depois passaria por um dos momentos mais difíceis da vida. Longe da família e com um filho de poucos meses de idade, a brasileira se viu sem emprego e vítima de um relacionamento que trouxe abuso psicológico e muito sofrimento. Foi a ajuda do Grupo Mulheres do Brasil núcleo Irlanda, desde 2021, que a ajudou a conhecer seus direitos.

Hoje com 38 anos, Roberta relembra que conheceu o namorado irlandês próximo à escola de idiomas onde estudava, poucos meses depois de ter chegado ao país. O relacionamento começou bem e a imagem que a brasileira viu foi de uma pessoa cuidadosa e carinhosa: “No começo você se sente uma pessoa querida, você está em outro país e sente que encontrou a cara metade. Você pensa: tem alguém que cuida de mim”, relembra.

Na vulnerabilidade de se estar sozinha no exterior, Roberta relembra que “a gente não conhece ninguém, mas acaba se deixando levar pelas emoções”. Poucos meses depois, o casal passou a viver junto e, com isso, tudo mudou. Inicialmente, as atitudes do companheiro a faziam pensar: “será que isso é normal?”.

“Eu ia fazer a comida e ele me falava que parecia comida de cachorro. Eu falava pra ele eu não sou robô. Trabalhava, chegava em casa, fazia comida e, se depois disso, eu sentasse no sofá, ele reclamava e dizia coisas horríveis. No dia seguinte, ele pedia desculpas, falava que tinha bebido e eu pensava que poderia melhorar. Eu não podia lavar a louça à noite porque a torneira fazia barulho e ele não gostava. Eu não podia usar a máquina de lavar quando ele estava em casa porque fazia barulho. Era algo que parecia inacreditável, era uma possessividade que ele queria me buscar na escola, me deixar no trabalho, me buscar no trabalho. Isso, no começo, ele não mostrava pra mim”, desabafa Roberta.

Mesmo com todo o sofrimento, a brasileira se sentia culpada e, muitas vezes, pensou que estava errada. Em outros momentos, relembrava que já esteve em um outro casamento por 15 anos e não era assim. Com isso, terminou e voltou para o relacionamento diversas vezes. Dois meses depois de sair da casa onde vivia com o namorado irlandês e ir para uma nova acomodação, no entanto, a imigrante descobriu que estava grávida.

“Na época, eu já havia pagado a minha cidadania italiana por via judicial e estava aguardando a decisão, mas tive que ouvir tudo o que a gente sabe: ele falou que eu tinha engravidado pelo passaporte, pediu pra tirar [abortar], não me ajudou em nada. Eu nunca forcei ele a nada e eu sempre disse que eu não ia forçar ele a registrar [o filho]”. Com o nascimento do bebê, porém, o pai decidiu que ficaria por perto. 

Mesmo vivendo em casas separadas, o ex-companheiro continuou com as agressões verbais, as humilhações e o abuso psicológico, ditando como Roberta deveria criar o filho. Entre as determinações, estava a exigência de que somente ela e ele cuidassem da criança, não aceitando que o bebê fosse deixado em uma creche, por exemplo. Com isso, Roberta não pôde voltar a trabalhar, pois o ex-companheiro decidia os horários em que buscaria o filho para cuidar.

“Eu emagreci 10 quilos, eu não gosto de nem falar porque eu fico emocionada [Roberta chora ao relembrar] porque foi o pior momento da minha vida. Eu não tinha ninguém, eu estava sem emprego, ele vinha buscar o bebê me xingando e devolvia me humilhando, dizendo: ‘eu não sou baby sitter’, mas eu sempre eu segui os horários dele. Ele colocava na minha cabeça que só eu e ele podíamos cuidar do filho, ninguém mais”, conta a brasileira.

Nessa situação, decidiu pedir ajuda nas redes sociais e recebeu o apoio da co-líder do Grupo Mulheres do Brasil, Élida Sousa. Foi nesse momento que a vida de Roberta começou a mudar. Com o suporte recebido, a brasileira conseguiu determinar como gostaria que fosse a criação do filho, compreendeu os seus direitos e entrou com um processo na Corte irlandesa contra o ex-companheiro. “Até então eu tinha medo, eu já tremia de pensar em encontrar ele [o pai do bebê]. Só melhorou depois que a Élida começou a me instruir”, relembra Roberta.

“Sem ajuda você vai continuar fazendo um círculo porque a sua mente é tão fechada. Como ele jogava na cara que eu era ingrata, eu acreditava”

A identificação de que estava sofrendo violência, porém, não foi algo simples. Entre as estratégias de Élida estava informar ou usar relatos ou histórias de pessoas para explicar os tipos de violência, compartilhar mensagens nas redes sociais e estabelecer um relacionamento de confiança com Roberta.

Depois de ter ultrapassado tantas barreiras, Roberta aconselha outras mulheres vivendo em situação semelhante a pedir ajuda o mais rapidamente possível: “Sem ajuda você vai continuar fazendo um círculo porque a sua mente é tão fechada. Como ele jogava na cara que eu era ingrata, eu acreditava. Se você não pedir ajuda você vai continuar vivendo os maus tratos”, explica a brasileira.

Caso o pedido de ajuda seja feito pela internet em redes sociais, Roberta diz às vítimas que é importante não dar ouvidos a julgamentos, pois às vezes “é muito difícil ler” o que algumas mulheres escrevem. Ela também pede que haja mais respeito e empatia por parte de quem critica vítimas de abuso.

O Grupo Mulheres do Brasil oferece atendimento confidencial, independente, gratuito, voluntário e sem fins lucrativos. “Esse trabalho nosso é para quebrar a cultura do silêncio. As pessoas que são violentadas e têm vergonha de falar porque elas são julgadas, discriminadas. Essa é uma contribuição para abrir as portas para essas mulheres que já tiveram as portas fechadas”, finaliza Élida.

Veja a lista de contatos para buscar ajuda e acesse aqui a cartilha completa:

* O nome utilizado é fictício para preservar a identidade da vítima.

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