Jornalista
“Como poderei viver? Como poderei viver? Sem a tua, sem a tua, sem a tua companhia” – a canção folclórica Peixe Vivo é uma marca da infância de quem foi alfabetizado no Brasil. Basta ler a primeira frase e o ritmo já se forma no imaginário. A realidade, porém, não é a mesma para filhos de brasileiros que vivem no exterior, principalmente nos países em que a língua oficial é muito diferente do português, como é o caso da Irlanda, onde se fala inglês.
Para os pais, fica o desejo de preservar a cultura brasileira nos pequenos, cuja a infância se desenvolve a mais de oito mil quilômetros de distância do Brasil. Com isso, aos sábados pela manhã, dezenas de crianças participam de aulas em português na Associação das Famílias Brasileiras na Irlanda (Ambi). O aprendizado da língua ocorre a partir de atividades lúdicas, com cantigas de roda, aulas sobre a geografia, fauna e flora brasileiras, entre outros assuntos e atividades desenvolvidas no local.
“Filha, filha, qual foi a primeira palavra que você falou em português?”, pergunta o carioca Vinícius Oliveira à filha Maria, de cinco anos. Em uma breve pausa entre as brincadeiras com os colegas, ela pensa e rapidamente responde: “Papai”. Nascida em Portugal e filha de pai brasileiro e mãe irlandesa, Maria reside na Ilha Esmeralda desde quando era bebê. Há mais de um ano, a pequena frequenta as aulas da Ambi em Dublin.
Vinícius conta que o idioma da casa é o inglês, assim como acontece na escola regular e com os demais amiguinhos e familiares: “Eu sou o único ponto de referência da língua portuguesa dentro de casa”. Então, entendi que eu precisava muito mais do que só falar com ela”. O consultor de TI explica que as aulas são uma parte importante, junto com a leitura de livros na língua paterna, e a busca pela interação com outros falantes: “A criança escolhe o idioma que ela fala […]. Então, é necessário criar oportunidades para que ela escolha falar o português também”, reforça o carioca.

Entre os livros ou brincando de pega-pega após o final da aula, Maria conversou somente em português e reforçou: “eu gosto de aprender português, brincar com os meus amigos e aprender várias coisas”. Para Vinícius, manter a língua é essencial: “Para ampliar os horizontes dela em tudo. Não só de conhecimento, mas afetivos também, para que ela possa, por exemplo, ter a oportunidade de se comunicar com a família dela no Brasil. Para que a língua não seja uma barreira de afeto pra ela”, finalizou.
Aulas com turmas para diferentes idades
A escola da Ambi possui aulas divididas por idade, começando com os Brazuquinhas, que são os bebês e se dividem em dois grupos: Zabelê (de 1 a 2 anos) e Bem-te-vi (de 2 a 3 anos). São 50 minutos de aula e as crianças entram na sala com um dos pais, preferencialmente quem fale português.
As atividades são ludicas e buscam criar uma conexão sensorial para os pequenos. Luana Andrade já foi professora na Ambi e agora acompanha o filho Arthur, de dois anos, nas aulas. A brasileira decidiu inserir o filho no projeto antes mesmo dele ir para a escolinha regular, já que lá ele terá exposição somente com a língua inglesa: “o projeto é muito legal, não só pedagogicamente, mas também para reunir as famílias e até mesmo para introduzir a cultura brasileira para os pequenos. Então, a gente quer incentivar para que ele saiba que ele tem essa herança”, relata Luana.
Há também a Turma do Saci para crianças de 3 a 6 anos e a Turma do Curupira, com idades entre 6 e 8 anos. Já os maiores, de 8 a 12 anos, fazem parte da Roda Literária, onde é exigido um nível básico de compreensão em português e as crianças precisam estar alfabetizadas em inglês, pois é realizado um trabalho de letramento, escrita e literatura. As aulas para esses grupos têm duração de duas horas.
Nascida no Brasil, Valentina passou a morar na Irlanda com cinco anos e, agora, aos oito, frequenta a Roda Literária. Nas aulas, ela mantém o aprendizado do português, já que teve a alfabetização em inglês. Amante de feijoada e pão de queijo, ela acha engraçada a confusão que a diferença na pronúncia de algumas palavras semelhantes pode causar como “centimeters”, em inglês; e “centímetros”, em português. Participativa nas aulas, ela gosta de falar e ler em português: “e também [gosto] dos amigos”, conta.

Valentina é filha da fonoaudióloga e pesquisadora em bilinguismo, Aline Polido, que também faz parte da direção da Ambi. A especialista explica que nunca é tarde para introduzir um novo idioma, mas quanto mais cedo, mais fácil o aprendizado: “O que a gente precisa pensar é que a criança bilingue tem uma série de benefícios, pois o bilinguismo faz com que o cérebro funcione de uma forma muito mais rápida, ela é muito mais empática, pois consegue entender quando o outro não está sendo compreendido, para aprender uma terceira língua é muito mais fácil”, detalha. Aline destaca ainda que, na fase adulta, uma pessoa bilíngue pode ter uma oportunidade melhor de trabalho, além de retardar o aparecimento do Alzheimer.
Segundo a fonoaudióloga, os pais que desejam estimular o aprendizado do português podem adotar estratégias dentro de casa, como falar somente em português com a criança, assistir filmes dublados, ler livros em português, expor ela a músicas e cantar musicas infantis que fazem parte da cultura popular, além de contar histórias. Para Aline, na experiência com a filha Valentina, as aulas em português também são muito importantes na manutenção da cultura: “é aprender coisas sobre o Brasil, inclusive sobre outras regiões do país, que muitas vezes não se aprenderia estando lá”, explica.
As aulas são organizadas por projetos, divididos em três termos (períodos) de 10 encontros. No total, são 3 termos por ano – de setembro a dezembro, de janeiro a abril e de abril a junho – seguindo o calendario escolar irlandês. Com isso, os alunos possuem as pausas na Páscoa, Halloween e Natal.
O calendário escolar foi retomado na última semana e, para informações sobre as inscrições, é possível entrar em contato pelo email [email protected]. As aulas de Português como Língua de Herança contam com uma coordenadora pedagógica, uma professora por turma e duas assistentes (auxiliares de sala). A mensalidade por termo tem valores entre € 180 a € 250. A entidade também oferece aulas online para crianças com mais de 5 anos.
A Ambi é uma organização comunitária sem fins lucrativos, fundada na Irlanda em 2010. A Associação também oferece outras atividades, como colônia de férias, cinema para as crianças, além da organização de eventos como Carnaval, Festa Junina e Dia das Crianças. Também há atividades para os adultos, como o Coro do Zero, com regência da maestra Cibele Sabione, aberto a todas as pessoas que gostam de cantar. O grupo trabalha em um formato flash, onde realizada seis ensaios e uma apresentação, como ocorreu na volta às aulas da Ambi, com um concerto para as crianças e pais.
